Um homem de verdade
“… Pelo conjunto de sua obra, demonstrou ser o produto da elaboração histórica que em sua forja misteriosa elabora de tempos em tempos homens que sintetizam as qualidades mais nobres da espécie…”1. Ele não veio ao mundo em tempo de paz. O ano em que nasceu marca a ofensiva do Exército Vermelho Soviético, que derrotará os invasores nazistas. E não seria a paz a sua missão, pois o tempo era (como continua sendo) de luta de classes, de opressão da grande maioria – os operários, os camponeses, os excluídos – pela minoria que detém em suas mãos a propriedade e os seus frutos. “Meu despertar para as questões sociais apareceu quando eu tinha 17 anos… aos 19 anos, considerei-me marxista-leninista”2. É claro que você já identificou este ser especial – Manoel Lisboa de Moura. Mas pode chamá-lo também de Mário, Celso, Zé, Galego. Por que tantos nomes?
O golpe civil-militar de 1964 encontrou Manoel Lisboa militando no Partido Comunista do Brasil, estudando Medicina na Universidade Federal de Alagoas. Ele nascera em Maceió, em fevereiro de 1944. Participou ativamente do movimento secundarista, cultural, universitário, ingressou no PCB, mas saiu deste para o PCdoB por considerar reformista a estratégia do “Partidão”. Foi preso várias vezes em 1964, 1965, 1966. Teve de ingressar na clandestinidade e se desencantou também com o Partido Comunista do Brasil, avaliando que o rompimento com o revisionismo havia sido apenas teórico. Junto com um grupo de companheiros fundou o Partido Comunista Revolucionário (PCR), em 1966. Embora as condições fossem inteiramente adversas, o trabalho do PCR se estendeu por todo o Nordeste, o que tornou seus dirigentes, especialmente o Galego, alvo da mais feroz perseguição.
Os tentáculos da ditadura acabaram encontrando-o no dia 15 de agosto de 1973, quando conversava com uma operária, Fortunata, na Praça Ian Flaming, no Rosarinho. “Ele tentou sacar a arma, mas não teve tempo”. Seu calvário foi longo, mas ele nada cedeu, coerente com a tese que defendia junto aos militantes: “delação é traição”. Morreu no dia 4 de setembro. Companheiros presos que conseguiram vê-lo no DOI-Codi do IV Exército ainda com vida e podendo falar, ouviram dele: “Minha hora chegou. Continuem o trabalho do Partido”.
“…Passou por todos os sofrimentos físicos e psicológicos, possíveis e imagináveis. Assistiu por dias e dias à sua própria agonia. Se viu e sentiu morrer lentamente. Superou tudo. Derrotou tudo – a tortura, o medo, a própria morte… Lembramos sempre dele. Com saudade, com tristeza, com alegria, com emoção. Às vezes, com uma lágrima solitária por sua memória. E em alguma madrugada, tenho vontade de sair pelas ruas, pichando em sua homenagem seu slogan favorito: “O PCR vive e luta!”3.
O grande dia chegará!
“Eu vos contemplo, gerações futuras, herdeiros da paz e do trabalho. O grande dia chegará. Meus soldados não se rendem”4.
Nem você se rendeu, bravo companheiro Emmanuel Bezerra dos Santos, quando, em meados de agosto de 1973, ao regressar de missão no Chile, a Operação Condor(ver A Verdade, nº 7) o interceptou na fronteira. Entregue ao DOI-Codi, você, como Manoel Lisboa, era coerente com o que defendia e nada delatou.
Certamente, enquanto se retorcia de dor, lembrou sua família humilde de pescadores da praia de Caiçara, Município de São Bento do Norte (RN), onde nasceu no dia 17 de junho de 1943. Lembrou o Atheneu, onde começou sua liderança estudantil, da Fundação José Augusto, onde cursou Sociologia. Recordou, sem dúvida, a Casa do Estudante de Natal, onde moravam os estudantes pobres do interior, e que você presidiu. Como esquecer os movimentos culturais natalenses dos quais participou como poeta, crítico literário e organizador de grupos e associações.
Mas inesquecível mesmo foi o Congresso da UNE em Ibuúna (SP), 1968. Você não entendia como se realizar um congresso daquele porte no interior, numa área isolada. Mas organizou entusiasticamente a bancada potiguar. Foi preso e teve seus direitos estudantis e políticos cassados com base no famigerado decreto nº 477, da Ditadura Militar, que proibia aos estudantes o exercício de atividades políticas nas escolas e universidades. A prisão de seis meses não te enfraqueceu; muito pelo contrário. Ao sair, ingressou no Partido Comunista Revolucionário (PCR). Dirigiu o comitê universitário, passou a atuar na clandestinidade em Pernambuco e Alagoas, e, em pouco tempo, integrou o Comitê Central, dada a sua “dedicação, honestidade, firmeza ideológica e aprofundamento dos conhecimentos teóricos”.
No início de agosto de 1973, o PCR enviou-o para Argentina e Chile, com o objetivo de contatar revolucionários brasileiros e organizações de esquerda latino-americanas, a fim de construir um processo de unificação do movimento anti-imperialista no continente. Caiu ao regressar.
Como costumavam fazer, os órgãos da repressão montaram uma farsa. Divulgaram nota publicada pela imprensa burguesa, dizendo que ele morrera num tiroteio com a Polícia no momento em que se encontraria com Manoel Lisboa em São Paulo. Tudo mentira. Emmanuel encontrar-se-ia com Manoel Lisboa no Recife, no dia 15 de setembro, quando estaria chegando da Argentina. Porém, Manoel fora preso no dia 15 de agosto, tendo sido também barbaramente torturado e assassinado nos porões da repressão. A mentira, como de praxe, era confirmada pelo falso laudo elaborado pelo já desmascarado médico-legista Harry Shibata. A transferência do cadáver de Manoel Lisboa para São Paulo fez parte da montagem da farsa.
Quando saiu a notícia plantada pela Polícia Política acerca do “tiroteio”, no dia 4 de setembro, os corpos de ambos já estavam sepultados numa vala comum do Cemitério Municipal Dom Bosco, no Distrito de Perus, em São Paulo. Isto é certo, tanto que dona Iracilda Lisboa, mãe de Manoel, foi a São Paulo no mesmo dia em que foi divulgada a notícia. Lá, a Polícia Política mostrou-lhe duas covas em outro cemitério, dizendo já ter ocorrido o sepultamento. Só restou-lhe colocar duas coroas de flores, mesmo desconfiando não se tratar da sepultura do seu filho e do companheiro e amigo, Emmanuel, fato que veio a ser comprovado posteriormente com a abertura da vala comum por ordem da então prefeita Luiza Erundina.
Quando seus restos mortais foram localizados e conduzidos para sepultamento na sua terra de origem, a homenagem foi muito bonita, emocionante, companheiro. Josivan Ribeiro, membro de tua Comunidade, fez uma saudação para não ser jamais olvidada: “Seus restos mortais nos trazem vida; seus ossos suplantaram mais de vinte anos de mentira. Eles pensaram que lhe tinham exterminado, no entanto a força de sua ideologia e de tantos outros que se foram exterminou a ditadura, e mais uma vez fica como exemplo”.
Teu Sangue Será Adubo
Nosso orgulho pela tua coragem,
tua bravura, teu espírito de luta,
tua dignidade, teu heroísmo.
Soubeste construir faróis para iluminar a escuridão.
Foste luz no túnel
Teu sangue será adubo
Tua alma já é semente
No fulgor da aurora
De um novo tempo
Tu brilharás
Certeza tenho
Manuel manual de amor
Justiça- liberdade – paz
Na dor de hoje, na dor de sempre,
Teus companheiros te homenageiam
Presença viva, na esperança
Cantaremos todos, ea ti
O novo sol
És o futuro
O amanhã virá!
Selma Bandeira, companheira de Manoel Lisboa, em 14/9/1983
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