O QUADRO: COLUNA VERTEBRAL DA REVOLUÇÃO

Che em discursoSeria desnecessário insistir nas características de nossa Revolução, na forma original, com alguns lances de espontaneidade, com que se produziu a passagem de uma revolução nacional de libertação para uma revolução socialista e na acumulação das etapas vividas a toda pressa no decorrer deste desenvolvimento, que foi dirigido pelos mesmos personagens da epopéia inicial de Moncada, passando pelo Granma e terminando na declaração do caráter socialista da Revolução cubana. Novos simpatizantes, quadros, organizações foram se somando à débil estrutura orgânica do movimento inicial, até se constituir no aluvião do povo que caracteriza nossa Revolução.

Quando se tornou patente que em Cuba uma nova classe social tomava definitivamente o poder, surgiram também as grandes limitações que se teria no exercício do poder estatal, devido às condições em que se encontrava o Estado, sem quadros para desenvolver o estado, sem quadros para desenvolver as tarefas que deviam se desempenhadas no aparelho estatal, na organização política e em toda a frente econômica.

No momento seguinte à tomada do poder, os cargos burocráticos foram designados “a dedo”; não houve maiores problemas, não os houve porque ainda não estava rompida a velha estrutura. O aparelho funcionava no seu ritmo lento e cansado de coisa velha e quase sem vida, mas tinha uma organização e nela a condição suficiente para se manter por inércia, não se importando com as mudanças políticas que ocorriam como prelúdios de mudança na estrutura econômica.

A 16 de abril de 1961, durante os funerais das vítimas do bombardeio do dia anterior dos aeroportos de Santiago de Cuba, San Antonio de los Banos e Ciudad Libertad, efetuado como preparação da invasão mercenária da Baía dos Porcos, Fidel Castro pronunciou a primeira confirmação oficial do caráter socialista que fora adquirindo nos fatos a Revolução Cubana: “… o que não podem perdoar-nos é que estejamos aqui, sob seu nariz, e que tenhamos feito uma Revolução Socialista sob o nariz dos Estados Unidos!”.

Em meados de 1960 se produzia entre Washington e Havana uma verdadeira escalada que radicalizava cada vez mais profunda e irreversivelmente a Revolução. As principais consequências desta situação foram as seguintes: rejeição da parte das empresas Esso, Texaco, e Shell de refinar o petróleo bruto soviético que Cuba tinha começado a importar (6 de junho); desapropriação destas companhias da parte do governo revolucionário (29 de junho de 1º de julho); redução da parte de Washington da quota de açúcar cubano no mercado norte-americano (6 de julho); suspensão total da quota; nacionalização das grandes companhias norte-americanas que operavam em Cuba (6 de agosto); mobilização da OEA contra Cuba (29 de agosto); desapropriação dos bancos norte-americanos (17 de setembro); nacionalização do resto dos interesses norte-americanos em Cuba (13 de outubro); aplicação da parte dos Estados Unidos um embargo sobre numerosos produtos de exportação para Cuba (19 de outubro).

O Movimento 26 de Julho, profundamente abalado pelas lutas internas entre suas alas esquerda e direita, não podia se dedicar a tarefas construtivas; e o Partido Socialista Popular*, pelo fato de suportar duros golpes e a ilegalidade durante anos, não pode desenvolver quadros intermediários para enfrentar as novas necessidades que se avizinhavam.

Quando ocorreram as primeiras intervenções estatais na economia, a tarefa de formar quadros não era muito complicada e podia-se escolher entre muita gente que tinha alguma base mínima para desempenhar o cargo de direção. Mas, com o aceleramento do processo, ocorrido a partir da nacionalização das empresas norte-americanas e, posteriormente, das grandes empresas cubanas, aconteceu uma verdadeira fome de técnicos administrativos. Sente-se, por outro lado, uma necessidade de técnicos na produção, devido ao êxodo de muitos deles, atraídos por melhores posições, oferecidas pelas companhias imperialistas em outros lugares da América ou mesmo nos Estados Unidos, de modo que o aparelho político deve se submeter a um intenso esforço, em meio às tarefas de estruturação, para dar atenção ideológica, a uma massa que entra em contato com a Revolução, cheia de vontade de aprender.

Todos cumprimos o papel da melhor maneira que podemos, mas não foi sem penas nem apuros. Muitos erros foram cometidos na parte administrativa do executivo, enormes falhas foram cometidas por parte dos novos administradores de empresas, que tinham responsabilidades demasiadamente grandes em suas mãos, e grandes e caros erros cometemos também no aparelho político, que, pouco a pouco, foi caindo numa tranquila e prazerosa burocracia, identificado quase como um trampolim para promoções e para cargos burocráticos de maior ou menor envergadura, desligado totalmente das massas.

O ponto central de nossos erros está em nossa falta de sentimento de realidade num dado momento. Mas a ferramenta que nos faltou, o que foi embotando nossa capacidade de percepção e convertendo o Partido numa entidade burocrática, pondo em perigo a administração e a produção, foi a falta de quadros desenvolvidos a nível médio. A política de quadros se tornava evidente como sinônimo de política de massas; estabelecer novamente o contato com as massas, contato estreitamente mantido pela Revolução na primeira fase de sua vida e que era sua palavra de ordem. Mas estabelecê-lo através de algum tipo de aparelho que permitisse tirar-lhe o maior proveito, tanto na percepção de todas as palpitações das massas como na transmissão das orientações políticas que, em muitos casos, somente foram dados por intervenções pessoais do Primeiro Ministro Fidel Castro ou de alguns outros líderes da Revolução.

A esta altura podemos nos perguntar: o que é um quadro? Devemos dizer que um quadro é um indivíduo que alcança o suficiente desenvolvimento político para poder interpretar as grandes diretrizes emanadas do poder central, torná-las suas e transmiti-las como orientação à massa, percebendo, além disso, as manifestações dessa massa com aos seus desejos e motivações. É um indivíduo de disciplina ideológica e administrativa que conhece e pratica o centralismo democrático e sabe avaliar as contradições existentes no método para aproveitar ao máximo suas múltiplas facetas; quem sabe praticar, na produção, o princípio da discussão coletiva e responsabilidade única; cuja finalidade está provada e cujo valor físico e moral se desenvolveram no compasso de seu desenvolvimento ideológico, de tal maneira que está sempre disposto a enfrentar qualquer debate e responder até com sua vida pela boa marcha da Revolução. É, além disso, um indivíduo com capacidade de análise própria, o que lhe permite tomar decisões necessárias e praticar a iniciativa criadora de modo que não se choque com a disciplina.

O quadro, pois, é um criador, um dirigente de alta estatura, um técnico de bom nível político, que pode, raciocinando dialeticamente, levar adiante seu setor de produção ou desenvolver a massa desde o seu posto político de direção.

Este exemplar humano, aparentemente rodeado de virtudes difíceis de alcançar, está, no entanto, presente no povo de Cuba, e nós o encontramos todo dia. O essencial é aproveitar todas as oportunidades que há para desenvolvê-lo ao máximo, para educá-lo, para tirar de cada personalidade o maior proveito e convertê-la no valor mais útil possível à nação.

Consegue-se o desenvolvimento de um quadro na labuta diária. Mas deve-se empreender a tarefa, além disso, de um modo sistemático, em escolas especiais, onde professores competentes sejam exemplos aos alunos, favorecendo a mais rápida ascensão ideológica.

Num regime que inicia a construção do socialismo, não se pode supor um quadro que não tenha um alto desenvolvimento político, mas por desenvolvimento político não se deve entender só o aprendizado da teoria marxista; deve-se também exigir a responsabilidade do indivíduo pelos seus atos, a disciplina que restringe qualquer debilidade transitória e que não esteja em conflito com uma alta dose de iniciativa, a preocupação constante por todos os problemas da Revolução. Para desenvolvê-lo é necessário começar por estabelecer o princípio seletivo na massa, é ali onde é necessário buscar as personalidades nascentes provadas no sacrifício ou que começam agora a mostrar suas inquietudes, e levá-las a escolas especiais, ou, na falta delas, para cargos de maior responsabilidade que ponha à prova no trabalho prático.

Assim fomos encontrando uma multidão de novos quadros, que se desenvolveram nestes anos; mas seu desenvolvimento não foi uniforme, posto que os jovens companheiros se viram frente à realidade da criação revolucionária sem uma adequada orientação de partido. Alguns triunfaram plenamente, mas há muitos que não puderam fazê-lo completamente e ficaram na metade do caminho, ou simplesmente se perderam no labirinto burocrático ou nas tentações que dá o poder.

Para assegurar o triunfo e a consolidação total da Revolução, necessitamos desenvolver quadros de diferentes tipos; o quadro político, que seja a base de nossas organizações de massa, e que as oriente através do Partido Unido da Revolução Socialista* (já se está começando a estabelecer as bases com as escolas nacionais e provinciais de Instrução Revolucionária e com os estudos e círculos de estudo de todos os níveis); também necessita-se de quadros militares para os quais se pode utilizar a seleção que a guerra fez a nossos jovens combatentes, já que ficou com vida uma boa quantidade, sem grandes conhecimentos teóricos, mas provados no fogo, provados nas condições mais duras da luta e de uma fidelidade a toda a prova como regime revolucionário, a cujo nascimento e desenvolvimento estão intimamente ligados desde as primeiras guerrilhas da Sierra. Devemos promover também quadros econômicos que se dediquem especificamente às tarefas difíceis da planificação e às tarefas da organização do Estado Socialista nestes momentos de criação.

É necessário trabalhar com profissionais, estimulando os jovens a seguir algumas das carreiras técnicas mais importantes para tentar dar à ciência o tom de entusiasmo ideológico que garanta um desenvolvimento acelerado. E é imperativo criar a equipe administrativa que saiba aproveitar e harmonizar os conhecimentos técnicos específicos com os demais e orientar as empresas e outras organizações do Estado para integrá-las ao forte ritmo da Revolução. Para todos eles, o denominador comum é a clareza política. Esta não consiste no apoio incondicional aos postulados da Revolução, mas sim num apoio racional, numa grande capacidade de sacrifícios e numa grande capacidade dialética de análise, que permite fazer contínuas contribuições, em todos os níveis, à rica teoria e a prática da Revolução. Estes companheiros devem ser selecionados na massa, aplicando-se o princípio único de que o melhor sobressaia e que ao melhor sejam dados as maiores oportunidades de desenvolvimento.

Em todos estes lugares, a função do quadro, apesar de ocupar frentes distintas, é a mesma. O quadro é a peça mestra do motor ideológico que é o Partido Unido da Revolução. É o que poderíamos chamar de parafuso dinâmico deste motor: parafuso enquanto peça funcional que assegura seu correto funcionamento, dinâmico enquanto não é um simples transmissor para cima ou para baixo de lemas e demandas, mas um criador que ajudará o desenvolvimento das massas e a informação dos dirigentes, servindo de ponto de contato com aqueles. Tem uma importante missão de vigilância para que não se liquide o grande espírito da Revolução, para que esta não durma, não diminua seu ritmo. É um lugar sensível; transmite o que vem da massa e lhe infunde o que orienta o Partido.

Desenvolver os quadros é, pois, uma tarefa inadiável no momento. O desenvolvimento dos quadros tem sido tomado com grande empenho pelo Governo revolucionário; com seus programas de bolsa de acordo com princípios seletivos, com os programas de estudo para os operários, dando diferentes oportunidades de desenvolvimento tecnológico, com o desenvolvimento das escolas secundárias e as universidades abrindo novas carreiras, com o desenvolvimento, enfim, do estudo, do trabalho e da vigilância revolucionária como lemas de toda a nossa pátria, baseados fundamentalmente na União de Jovens Comunistas, de onde devem sair os quadros de todo o tipo e ainda os quadros dirigentes da Revolução no futuro.

Intimamente ligado ao conceito de quadro está o da capacidade de sacrifício, de demonstrar com o próprio exemplo as verdades e as palavras de ordem da revolução. O quadro, como dirigente político, deve ganhar o respeito dos trabalhadores com sua ação. É imprescindível que conte com a consideração e o carinho dos companheiros a que devem guiar nos caminhos da vanguarda. Por tudo isso, não há melhor quadro do que aquele cuja massa realiza eleição nas assembleias que designam os operários exemplares, os que serão integrados ao PURS (Partido Unido da Revolução Socialista) junto com os antigos membros do ORI (Organizações Revolucionárias Integradas), que passem por todas as provas de seleção exigidas. A princípio, constituirão um partido pequeno, mas sua influência entre os trabalhadores será imensa; e logo este crescerá, quando o avanço da consciência socialista for se convertendo em necessidade o trabalho e a entrega total à causa do povo. Com dirigentes médios dessa categoria, as difíceis tarefas que temos pela frente serão cumpridas com menos contratempos. Depois de um período de desordem e de maus métodos, chegou-se a uma política justa, que não será jamais abandonada. Com o estímulo sempre renovado da classe operária, nutrindo com suas fontes inesgotáveis as filas do futuro Partido Unido da Revolução Socialista, e com a direção de nosso partido, entramos com tudo na tarefa de formação de quadros que garantam o desenvolvimento impetuoso de nossa Revolução. Haveremos de triunfar nesta empreitada.

Cuba Socialista, Setembro, 1962.

Comandante Ernesto Guevara de La Serna

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(*) O Partido Socialista Popular era um partido socialista anterior à Revolução e análogo a outros partidos de outros países.

(*) O primeiro esforço das organizações revolucionárias cubanas pela constituição de um partido marxista-leninista unificado na fase posterior à Revolução, foi a criação das ORI (Organizações Revolucionárias Integradas), agrupando num único organismo político o Movimento 26 de Julho, o Partido Socialista Popular e o Diretório Estudantil Revolucionário. Em função de sérios desvios de caráter sectário, as ORI foram extintas e se passou à formação do Partido Unido da Revolução Socialista, que posteriormente deu origem ao Partido Comunista de Cuba.

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